Por Cristian Klein, publicado no Valor Econômco
Nem o capital político de quase 20 milhões de votos (19,3%) acumulado por Marina Silva na última eleição presidencial foi suficiente para que ela tivesse voz no PV. Sem espaço, a ex-senadora sentiu-se obrigada a sair do partido, controlado desde 1999 pelo deputado federal paulista, e bem menos conhecido, José Luiz Penna.
A situação de Marina, hoje desabrigada e à procura de uma agremiação pela qual se candidatar, mostra como é forte o poder das burocracias partidárias na política brasileira e expõe um sistema no qual legendas são dominadas por um único dirigente ou uma oligarquia deles.
O mecanismo pelo qual esse domínio é possível aparece em denúncias e reclamações esparsas, mas que vem ganhando cada vez mais atenção. São as comissões provisórias, previstas pela legislação como forma de organização num momento embrionário do partido mas que se perenizam e mantêm por anos dirigentes no comando das siglas.
É o caso de Penna, no PV; do ex-deputado federal Roberto Jefferson, no PTB; e do deputado Valdemar Costa Neto e do senador Alfredo Nascimento, no PR.
Geralmente mais associado a partidos fisiológicos e de direita, o controle da sigla por grandes caciques, no entanto, independe de ideologia e abrange partidos mais à esquerda, como o PDT, do ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi, que assumiu a legenda após a morte de Leonel Brizola, em 2004, e o PSB, do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que herdou a liderança do avô, Miguel Arraes.
Em comum entre esses partidos está a alta taxa de comissões provisórias, seja no nível municipal ou no estadual. Em levantamento feito para o Valor, o cientista político e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap), Fernando Guarnieri, analisou o percentual de comissões provisórias de todos os 27 partidos em relação à sua presença nos municípios.
Apenas os dois maiores partidos, PT (20%) e PMDB (28%), são constituídos largamente por diretórios municipais em vez de comissões provisórias, o que indica uma maior descentralização de poder interno.
Enquanto os diretórios, compostos a partir de eleições e com mandatos fixos, têm autonomia para tomar as principais decisões locais, as comissões provisórias são nomeadas pela instância imediatamente superior e podem ser destituídas a qualquer momento.
O modelo cria uma relação de dependência que é assim resumida pelo ex-presidente estadual do PV em São Paulo, Maurício Brusadin: "Um cacicão (nacional) protege um cacique (estadual), que protege um caciquezinho (municipal). É um sistema perfeito, a la "Matrix" [o filme]. Não tem como divergir ou se revoltar. Porque quem fala contra é expurgado", afirma o economista, de 36 anos, que estava havia 18 no PV e saiu da legenda junto com Marina Silva.
Brusadin diz que o movimento de "transição democrática", liderado pela ex-senadora, conseguia "encher as reuniões de filiados, mas os dirigentes não iam", temerosos de perder seus cargos, como acabou ocorrendo com ele.
Os números mostram que não foi por menos que Marina Silva e seu grupo foram derrotados na queda-de-braço com o presidente do partido, José Luiz Penna. Ao lado do PR, o PV é a legenda mais centralizada, com a maior taxa de comissões provisórias, 98%, perdendo apenas para o PRB, sob a influência da Igreja Universal do Reino de Deus, cujo índice é de 99%.
A situação nos municípios é quase um espelhamento de como os partidos estão organizados no nível estadual. O PT tem diretórios estaduais em todas as 27 unidades da Federação. O PV e o PR, em nenhuma. Todas são comissões provisórias.
"As comissões permitem que o dirigente da instância superior tenha amplos poderes, decida tudo, quem é o candidato a prefeito, quem pode aparecer no horário eleitoral... Os filiados não têm direito a voto. É muito injusto", reclama Brusadin.
O economista faz o mea culpa por ter aceitado o "jogo de ascensão complexo", no qual era subserviente e "não podia discordar do rei", mas contra o qual se voltou nos últimos quatro anos de partido. Um jogo cujas regras não escritas incluíam agrados, como whisky no fim do ano, e obediência ao dirigente imediato do partido, em uma "cultura do medo insuportável".
A principal crítica de Brusadin é contra os acordos escusos, caracterizados como uma "venda do partido". O mais comum e decepcionante, conta, é quando a agremiação tem um nome que anima os filiados, com potencial de crescimento em determinada eleição municipal, mas o líder local ou acima dele impede o lançamento da candidatura própria e vende o apoio da sigla, em dinheiro ou cargos, para facilitar, em regra, a reeleição do prefeito. Haveria cobrança até para se garantir a candidatura na generosa chapa proporcional de vereadores, que permite a inscrição de dezenas de nomes.
Esse ambiente seria um dos principais motivos para desestimular a militância partidária e impedir o crescimento das siglas médias e pequenas, lamenta.
"O pensamento é o seguinte: se lá não temos muita chance, vamos arrendar o partido. Ainda vou escrever o livro "Pequenos partidos, grandes negócios"", afirma Brusadin.
O cientista político Fernando Guarnieri preferiu escrever a tese de doutorado "A força dos partidos fracos", defendida na USP, em 2009. No trabalho, ele utiliza a taxa de comissões provisórias municipais como um indicador para medir a democracia interna dos partidos. Os resultados o levam a dividir as legendas em três categorias: poliárquicas (ou organizadas), oligárquicas (ou de organização mista) e monocráticas (ou não organizadas).
Na atualização e ampliação dos dados para os 26 Estados com órgãos municipais, feitas a pedido do Valor, o PT e o PMDB, com menos de um terço de comissões provisórias, pertencem à primeira categoria, dos mais democráticos. O PSDB (45%), o PCdoB (55%) e o DEM (59%), com taxas entre um terço e dois terços, são classificados no bloco intermediário. E as demais 22 siglas, com mais de dois terços de comissões provisórias, caem na categoria dos monocráticos.
Guarnieri afirma, contudo, que, mais do que uma coincidência ou um modelo maquiavélico, a proliferação das comissões provisórias atenderia a uma necessidade dos partidos médios e pequenos em busca de sobrevivência.
Como a tendência, pela primazia das eleições majoritárias, seria de concentração de força em dois ou três partidos, e esse espaço já está ocupado por PT, PMDB e PSDB, restaria aos demais adotar outro caminho. E as comissões provisórias serviriam a esse propósito. Em sua visão, elas são utilizadas estrategicamente para permitir aos líderes uma maior coordenação durante as eleições, lhes dando mais liberdade de fazer alianças e acordos.
"Por um lado, as comissões são obstáculos a um ambiente de maior democracia interna, mas, por outro, elas estruturam a arena eleitoral e dão estabilidade aos resultados", diz o pesquisador.
Guarnieri destaca que a força advinda dessa forma de (não) organização contraria o senso comum de que as eleições brasileiras seriam baseadas em um "bando de candidatos aleatórios" e que o poder dos políticos viria do controle sobre os votos de uma parcela do eleitorado. Antes de cultivar os votos, é importante garantir acesso a recursos dos partidos, como o tempo de propaganda de TV e, ainda mais primordial, o direito de se candidatar pela legenda - decisões que passam pela coordenação das burocracias partidárias.
O pesquisador lembra que o instituto das comissões provisórias, criado pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lopp), de 1971, é uma herança da ditadura militar e tinha como objetivo impedir a ascensão de candidatos indesejados na Arena, partido de sustentação do regime.
Para Maurício Brusadin, a legislação seguinte, de 1995, ainda "cheira a mofo", ao considerar como soberana apenas a Executiva nacional. Em sua opinião, deveria-se discutir uma espécie de Estatuto do Filiado, nos moldes em que se criou o Estatuto do Torcedor, para o futebol.O deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) é contra grandes interferências na vida das legendas e defende a livre organização partidária. "É um princípio conquistado na luta contra a ditadura e faz parte da Constituição. Quem dá força ao partido são os eleitores", diz, ao lembrar que os filiados petistas podem escolher dos dirigentes locais ao presidente nacional. "O PT tem eleição direta. Mas a indireta é ilegítima? Não. Difícil definir o que é melhor. Não podemos obrigar", afirma.
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