sábado, novembro 14, 2009

Uma luz no apagão do debate político brasileiro

Do cientista político Fernando Abrucio, publicado originalmente na Revista Época

A proximidade das eleições está estimulando um apagão no debate político. Obviamente que os partidos devem realçar suas diferenças para conquistar os eleitores. Porém isso deve ser feito sem criar falsas dicotomias entre as forças políticas, de modo a aproveitar o aprendizado acumulado em relação às políticas públicas. O combate figadal que domina a cena política atual ignora os consensos positivos criados nos dois últimos governos. E nenhum avanço advirá dessas brigas irracionais.

Mas há uma luz no meio desse apagão. O Ministério do Planejamento montou uma comissão de juristas que, com independência de trabalho, produziu uma proposta para reformular o desenho das organizações públicas e de seu relacionamento com seus parceiros e controladores. Seria uma nova Lei Orgânica da Administração Pública, destinada a substituir o Decreto-Lei 200, produzido no regime autoritário.

A magnitude e a importância da tarefa são inegáveis. O Brasil precisa aperfeiçoar sua gestão pública para alcançar os objetivos colocados tanto pela “Constituição cidadã” como pela necessidade de ter um Estado eficiente. O que chama mais a atenção, contudo, é o contorno para além do partidarismo de ocasião alcançado por esse projeto. Isso fica claro no livro organizado para resumir e analisar a proposta, intitulado Nova organização administrativa brasileira (Editora Fórum). Essa obra teve como organizador Paulo Modesto, grande administrativista que foi fundamental na elaboração da Emenda 19, aprovada no governo FHC.

As duas pessoas incumbidas das apresentações do livro revelam o caráter do projeto: Paulo Bernardo, ministro do presidente Lula, e Luiz Carlos Bresser Pereira, ministro do presidente Fernando Henrique. É estimulante observar uma concordância de alto nível para melhorar a gestão pública. Paulo Bernardo destaca duas coisas que devem fazer parte de qualquer aperfeiçoamento do Estado brasileiro. A primeira é a redefinição jurídica das relações entre o setor público e a sociedade. Sabe-se que tal relacionamento é fundamental na produção de políticas públicas. Mas também se tem consciência dos riscos de indefinições nessa seara, que podem levar ao desperdício de recursos públicos. O outro ponto ressaltado pelo ministro é o reforço do controle social da administração – não como uma forma de substituir os demais controles, mas como um mecanismo essencial de tornar os governos mais transparentes e abertos.

Uma comissão de juristas produziu uma proposta para modernizar a gestão pública brasileira

Tais temáticas foram igualmente ressaltadas por Bresser Pereira. Só que ele destaca outras questões referentes à melhoria do desempenho das organizações públicas. O anteprojeto constitui uma administração pública orientada pela busca de resultados e organizada de forma contratual. Nela, os órgãos ganham autonomia e agilidade, em troca do estabelecimento de metas monitoradas pelos ministérios, pelas instituições públicas e pela sociedade. Essa idéia segue o que há de mais bem-sucedido no mundo e na gestão pública brasileira.

O debate público está tão contaminado que a notícia sobre esse anteprojeto apareceu na forma de crítica ao papel do Tribunal de Contas da União (TCU), aproveitando um arranca-rabo recente entre o presidente Lula e esse órgão. Trata-se de uma falácia. Primeiro porque o TCU não está, nem de longe, no centro da discussão do projeto. Além disso, o que se diz sobre o controle, em essência, é que ele precisa obedecer cada vez mais a dois princípios consagrados no plano internacional: deve-se reduzir o controle meramente formal da administração pública, que traz mais custos que ganhos à sociedade; e que é necessário evitar a sobreposição e descoordenação entre os órgãos e os mecanismos fiscalizadores. O TCU não deve temer nenhum desses pontos. Deve aproveitar esse debate para incluir outro ponto na pauta: para termos melhores organizações públicas, é fundamental aprofundar a profissionalização do Estado brasileiro.

O projeto de nova Lei Orgânica da Administração Pública é uma obra aberta a críticas e modificações. Mas já começou bem ao evitar o atual viés eleitoral que deixou às escuras o debate político brasileiro.

quinta-feira, novembro 05, 2009

Autoritarismo popular pelo voto direto

Maria Inês Nassif, do Valor Econômico

Ao final de sete anos de governo e à véspera de uma eleição em que a sua simples presença de um lado da disputa pode definir a sua sucessão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está dando um nó na cabeça da oposição. Não só pela sua popularidade, mas pela forma como conseguiu usar essa popularidade para mudar completamente uma agenda política e econômica à qual, no primeiro mandato, parecia amarrado.

À direita e à esquerda, essa mudança de agenda está sendo colocada como autocrática. Todavia, como definir historicamente uma mudança de agenda política e econômica num regime democrático sem a suposição de que existe apoio popular a ela? O apoio é a um presidente ou a um outro projeto de poder? Como desvincular o presidente Lula do seu partido político, o PT, quando a história política de ambos é a mesma (e isso é um fato mesmo se constatando que, depois de quase dois mandatos como presidente num regime presidencialista, Lula tornou-se maior que o PT)? Se projetos políticos não se sucederem no poder, em alternância, o que se pode querer de uma democracia? É personalismo ou projeto político diferenciado uma inversão completa de agenda em relação aos governos anteriores?

A definição - ou acusação - imputada a Lula pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em artigo recente publicada em dois jornais paulistas ("Folha de S. Paulo" e "Estado de S. Paulo"), e reiterada em entrevista ao colunista Vinicius Torres Freire, ontem, na "Folha", de exercer uma "Presidência imperial", ou ser o artífice de um estado de "apatia com autoritarismo popular", não parece plausível. Não dá para "acusar" alguém de ser popular. FHC também o foi no seu primeiro mandato e venceu as eleições para a reeleição no primeiro turno, em 1998. Não dá para "acusar" alguém por estar no poder, se essa pessoa foi eleita. FHC também foi, duas vezes. E, como Lula, também tentou, embora não com tanto empenho, fazer o seu sucessor.

Como Lula, Fernando Henrique Cardoso foi vitorioso como principal articulador de uma nova agenda política e econômica - no seu caso, o discurso vitorioso foi o de rompimento com a agenda nacional-populista de Vargas que ainda estava entranhada na sociedade. Como Lula, FHC teve que fazer valer o seu projeto num regime presidencialista com forte dispersão partidária. Ninguém o acusou de autoritário por isso. E não existe nenhuma objetividade numa acusação de autoritarismo se a pessoa que está sendo acusada se submeteu às urnas e mantém-se estritamente no jogo político institucional (ainda anteontem, Michael Bloomberg se elegeu, pela terceira vez, prefeito de Nova York).

A grande arte do Brasil democrático foi a de conseguir criar, mesmo após longo período de ditadura militar, uma cultura democrática. Foi arte, não foi sorte. Um único presidente, Fernando Collor, tinha um perfil que tendia ao autoritarismo mas, salvo a edição do Plano Collor numa conjuntura de hiperinflação no primeiro dia de seu governo - que enxugou drasticamente a liquidez com o confisco de poupança -, o autoritarismo não conseguiu passar de um discurso forte com cores nazistas. Collor mais ladrou do que mordeu: aceitou sem reações um processo de impeachment que acabou se tornando um símbolo da democracia brasileira. O presidente Itamar Franco, eleito como seu vice, governou por dois anos, tinha tradições democráticas e não as negou no poder.

Antes deles, o primeiro presidente civil depois do golpe de 1964 e último a se eleger pela via indireta, José Sarney, teve muitos defeitos, mas seu governo foi fundamental para a consolidação da democracia. Foi nesse período que funcionou a Assembleia Nacional Constituinte. Não consta que Sarney, mesmo com o pecado original de ter antes vivido à sombra do regime autoritário, tenha cometido atentados contra a então tenra democracia. Como vice do presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves, Sarney ascendeu ao poder pela morte de um dos grandes articuladores da transição para a democracia. Estava comprometido com as forças democráticas, já majoritárias na sociedade, e não conseguiria sobreviver no poder sem o apoio delas.

Os governos do presidente Fernando Henrique Cardoso tiveram grande conteúdo democrático. FHC vinha da oposição institucional ao regime militar, o MDB, ingressou no PMDB e ascendeu pelo PSDB, partido surgido de um racha do PMDB. FHC, assim como Lula, esteve presente nos grandes movimentos pela democracia no pré-85. No governo, foi um hábil, e democrata, articulador de forças econômicas que emergiam num Brasil que se abria para o capitalismo financeiro internacional. Não houve autoritarismo nessa mudança de agenda: ele articulou forças que se moviam no cenário democrático a partir de mandato ao qual foi investido pelo voto popular. FHC foi bastante popular no final do primeiro governo, quando o Plano Real produziu um ganho de distribuição de renda incomum num país de renda concentrada como o Brasil. Perdeu esse legado no segundo mandato, quando a renda voltou a se concentrar.

O presidente Lula não foi nem mais, nem menos democrático que os outros civis. Foi igualmente democrata. Com mandato popular, articulou forças que se moviam no território da democracia para mudar a agenda política e econômica. A interpretação de que é a figura central de um "autoritarismo popular" não leva em conta a origem do mandato de Lula - o voto, como os dois mandatos de FHC -, mas o fato de que o atual presidente articula outras esferas da sociedade que foram incorporadas ao projeto de poder tucano apenas durante o Plano Real, e dele foram apartadas por sucessivas crises e um modelo de acumulação que se tornou excludente, passado o efeito desconcentrador do êxito anti-inflacionário.

A designação de "autoritarismo" não leva em conta o voto; a "acusação" de popular não faz justiça a quem vota.

Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras