quinta-feira, agosto 25, 2011

Manobra eterniza caciques políticos

Por Cristian Klein, publicado no Valor Econômco

Nem o capital político de quase 20 milhões de votos (19,3%) acumulado por Marina Silva na última eleição presidencial foi suficiente para que ela tivesse voz no PV. Sem espaço, a ex-senadora sentiu-se obrigada a sair do partido, controlado desde 1999 pelo deputado federal paulista, e bem menos conhecido, José Luiz Penna.

A situação de Marina, hoje desabrigada e à procura de uma agremiação pela qual se candidatar, mostra como é forte o poder das burocracias partidárias na política brasileira e expõe um sistema no qual legendas são dominadas por um único dirigente ou uma oligarquia deles.

O mecanismo pelo qual esse domínio é possível aparece em denúncias e reclamações esparsas, mas que vem ganhando cada vez mais atenção. São as comissões provisórias, previstas pela legislação como forma de organização num momento embrionário do partido mas que se perenizam e mantêm por anos dirigentes no comando das siglas.

É o caso de Penna, no PV; do ex-deputado federal Roberto Jefferson, no PTB; e do deputado Valdemar Costa Neto e do senador Alfredo Nascimento, no PR.

Geralmente mais associado a partidos fisiológicos e de direita, o controle da sigla por grandes caciques, no entanto, independe de ideologia e abrange partidos mais à esquerda, como o PDT, do ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi, que assumiu a legenda após a morte de Leonel Brizola, em 2004, e o PSB, do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que herdou a liderança do avô, Miguel Arraes.

Em comum entre esses partidos está a alta taxa de comissões provisórias, seja no nível municipal ou no estadual. Em levantamento feito para o Valor, o cientista político e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap), Fernando Guarnieri, analisou o percentual de comissões provisórias de todos os 27 partidos em relação à sua presença nos municípios.

Apenas os dois maiores partidos, PT (20%) e PMDB (28%), são constituídos largamente por diretórios municipais em vez de comissões provisórias, o que indica uma maior descentralização de poder interno.

Enquanto os diretórios, compostos a partir de eleições e com mandatos fixos, têm autonomia para tomar as principais decisões locais, as comissões provisórias são nomeadas pela instância imediatamente superior e podem ser destituídas a qualquer momento.

O modelo cria uma relação de dependência que é assim resumida pelo ex-presidente estadual do PV em São Paulo, Maurício Brusadin: "Um cacicão (nacional) protege um cacique (estadual), que protege um caciquezinho (municipal). É um sistema perfeito, a la "Matrix" [o filme]. Não tem como divergir ou se revoltar. Porque quem fala contra é expurgado", afirma o economista, de 36 anos, que estava havia 18 no PV e saiu da legenda junto com Marina Silva.

Brusadin diz que o movimento de "transição democrática", liderado pela ex-senadora, conseguia "encher as reuniões de filiados, mas os dirigentes não iam", temerosos de perder seus cargos, como acabou ocorrendo com ele.

Os números mostram que não foi por menos que Marina Silva e seu grupo foram derrotados na queda-de-braço com o presidente do partido, José Luiz Penna. Ao lado do PR, o PV é a legenda mais centralizada, com a maior taxa de comissões provisórias, 98%, perdendo apenas para o PRB, sob a influência da Igreja Universal do Reino de Deus, cujo índice é de 99%.

A situação nos municípios é quase um espelhamento de como os partidos estão organizados no nível estadual. O PT tem diretórios estaduais em todas as 27 unidades da Federação. O PV e o PR, em nenhuma. Todas são comissões provisórias.

"As comissões permitem que o dirigente da instância superior tenha amplos poderes, decida tudo, quem é o candidato a prefeito, quem pode aparecer no horário eleitoral... Os filiados não têm direito a voto. É muito injusto", reclama Brusadin.

O economista faz o mea culpa por ter aceitado o "jogo de ascensão complexo", no qual era subserviente e "não podia discordar do rei", mas contra o qual se voltou nos últimos quatro anos de partido. Um jogo cujas regras não escritas incluíam agrados, como whisky no fim do ano, e obediência ao dirigente imediato do partido, em uma "cultura do medo insuportável".

A principal crítica de Brusadin é contra os acordos escusos, caracterizados como uma "venda do partido". O mais comum e decepcionante, conta, é quando a agremiação tem um nome que anima os filiados, com potencial de crescimento em determinada eleição municipal, mas o líder local ou acima dele impede o lançamento da candidatura própria e vende o apoio da sigla, em dinheiro ou cargos, para facilitar, em regra, a reeleição do prefeito. Haveria cobrança até para se garantir a candidatura na generosa chapa proporcional de vereadores, que permite a inscrição de dezenas de nomes.

Esse ambiente seria um dos principais motivos para desestimular a militância partidária e impedir o crescimento das siglas médias e pequenas, lamenta.

"O pensamento é o seguinte: se lá não temos muita chance, vamos arrendar o partido. Ainda vou escrever o livro "Pequenos partidos, grandes negócios"", afirma Brusadin.

O cientista político Fernando Guarnieri preferiu escrever a tese de doutorado "A força dos partidos fracos", defendida na USP, em 2009. No trabalho, ele utiliza a taxa de comissões provisórias municipais como um indicador para medir a democracia interna dos partidos. Os resultados o levam a dividir as legendas em três categorias: poliárquicas (ou organizadas), oligárquicas (ou de organização mista) e monocráticas (ou não organizadas).

Na atualização e ampliação dos dados para os 26 Estados com órgãos municipais, feitas a pedido do Valor, o PT e o PMDB, com menos de um terço de comissões provisórias, pertencem à primeira categoria, dos mais democráticos. O PSDB (45%), o PCdoB (55%) e o DEM (59%), com taxas entre um terço e dois terços, são classificados no bloco intermediário. E as demais 22 siglas, com mais de dois terços de comissões provisórias, caem na categoria dos monocráticos.

Guarnieri afirma, contudo, que, mais do que uma coincidência ou um modelo maquiavélico, a proliferação das comissões provisórias atenderia a uma necessidade dos partidos médios e pequenos em busca de sobrevivência.

Como a tendência, pela primazia das eleições majoritárias, seria de concentração de força em dois ou três partidos, e esse espaço já está ocupado por PT, PMDB e PSDB, restaria aos demais adotar outro caminho. E as comissões provisórias serviriam a esse propósito. Em sua visão, elas são utilizadas estrategicamente para permitir aos líderes uma maior coordenação durante as eleições, lhes dando mais liberdade de fazer alianças e acordos.

"Por um lado, as comissões são obstáculos a um ambiente de maior democracia interna, mas, por outro, elas estruturam a arena eleitoral e dão estabilidade aos resultados", diz o pesquisador.

Guarnieri destaca que a força advinda dessa forma de (não) organização contraria o senso comum de que as eleições brasileiras seriam baseadas em um "bando de candidatos aleatórios" e que o poder dos políticos viria do controle sobre os votos de uma parcela do eleitorado. Antes de cultivar os votos, é importante garantir acesso a recursos dos partidos, como o tempo de propaganda de TV e, ainda mais primordial, o direito de se candidatar pela legenda - decisões que passam pela coordenação das burocracias partidárias.

O pesquisador lembra que o instituto das comissões provisórias, criado pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lopp), de 1971, é uma herança da ditadura militar e tinha como objetivo impedir a ascensão de candidatos indesejados na Arena, partido de sustentação do regime.

Para Maurício Brusadin, a legislação seguinte, de 1995, ainda "cheira a mofo", ao considerar como soberana apenas a Executiva nacional. Em sua opinião, deveria-se discutir uma espécie de Estatuto do Filiado, nos moldes em que se criou o Estatuto do Torcedor, para o futebol.O deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) é contra grandes interferências na vida das legendas e defende a livre organização partidária. "É um princípio conquistado na luta contra a ditadura e faz parte da Constituição. Quem dá força ao partido são os eleitores", diz, ao lembrar que os filiados petistas podem escolher dos dirigentes locais ao presidente nacional. "O PT tem eleição direta. Mas a indireta é ilegítima? Não. Difícil definir o que é melhor. Não podemos obrigar", afirma.

O voto local

Do cientista político Marcos Coimbra

Toda eleição é importante para a comunidade em que ocorre. Da maior à menor, qualquer uma provoca efeitos na vida das pessoas. Seja para o Legislativo, seja para o Executivo.

É falsa a tese de que, na sociedade moderna, a administração se racionalizou ao ponto de torná-las irrelevantes. De que estamos na era do depois da política, em que as questões da vida coletiva se tornaram técnicas. De que não interessa a cor do cachorro, sendo unicamente importante que saiba latir.

Fez clara diferença, por exemplo, a eleição de Lula em 2002. É provável que algumas coisas que o petista realizou em seus dois mandatos não fossem muito diferentes das que Serra teria empreendido se tivesse ganho. De um lado, existe uma inércia na ação de governo que não permite, em diversas áreas, alterações significativas de rumo a cada vez que se troca o presidente. De outro, a realidade internacional nem sempre deixa espaço para decisões inteiramente livres. Faz-se o que é possível, e o que é possível, muitas vezes, não varia.

Mas qualquer um sabe que o Brasil depois de Lula não é igual ao que teríamos se Serra tivesse ocupado seu posto. Nas coisas boas e nas ruins.

O eleitor tinha perfeita consciência disso quando votou em Lula. Ao escolhê-lo, as pessoas sabiam que faziam uma opção entre determinado rumo e outro. O que estava em pauta não era uma simples troca de administrador, de alguém para desempenhar um papel basicamente igual e fazer as mesmas coisas.
Em 2010, isso voltou a estar claro para a grande maioria do eleitorado. Até o cidadão mais ingênuo sabia que o Zé (Serra) não ia continuar o trabalho do Lula da Silva, apesar da campanha do tucano dizer que sim; que, se quisesse continuidade, votaria em Dilma.

As eleições estaduais e municipais também são assim. Votar em um candidato a governador ou a prefeito é escolher o modo como serão administradas políticas que afetam o cotidiano de cada eleitor. É trazer determinados temas para o primeiro plano e deixar outros em menor destaque. É afirmar o que cada um prefere para seu estado ou cidade. Certamente, é mais do que apenas optar entre pretendentes a aplicar receita idêntica.

Ano que vem, na hora em que os eleitores votarem nos candidatos a vereador e prefeito, estarão se manifestando a respeito dos rumos que desejam para os municípios em que vivem. Alguns votarão orientados por preferências políticas e partidárias estruturadas há muito tempo, outros de acordo com sua percepção do momento. Uns levarão determinados aspectos em conta, outros não. Mas todos estarão pensando fundamentalmente em suas cidades. Ainda bem.

Parece estranho, mas há quem acredite que o eleitor vota em um candidato a prefeito como se quisesse “passar um recado” ou “homenagear um líder”. Que, no fundo, acha secundário o ocupante do cargo, pois sua verdadeira preocupação é transmitir a alguém uma “mensagem”.

O eleitor procura o candidato com mais possibilidade de fazer com que a prefeitura de sua cidade se pareça com o que deseja. A chance de que vote em quem, a seus olhos, não conseguiria isso, a fim de “enviar mensagens”, é mínima. Afinal, quem pagaria a conta seria ele, tendo que suportar alguém desqualificado no cargo durante quatro anos.

Ele pode errar (e sabe disso), mas não deliberadamente. Pode, por exemplo, estar frustrado com o governador de seu estado, mas não deixará de votar no candidato a prefeito de seu partido, se o considerar o melhor para a cidade.

Vice-versa, o contrário: não é por gostar do governador que votará em um mau correligionário dele.

Raciocínio semelhante serve para os chamados “grandes eleitores”. Porque um eleitor, lá na sua cidade, conhecedor dos candidatos, ciente do que representam, votaria em quem, por exemplo, Lula quer que ele vote? Se for em quem já pensa, ótimo, o apoio somaria. Mas, quando está convencido de que o melhor é outro nome? Porque mudaria sua decisão? Para expressar seu apreço pelo ex-presidente? E desde quando uma homenagem como essa faz sentido (para os eleitores normais)?

Vamos fazer, ano que vem, quase 6 mil eleições. Cada uma é diferente, todas são importantes. Se enganam os que acham possível nacionalizá-las ou dirigi-las.

terça-feira, agosto 23, 2011

Um choque de gestão para a candidatura Aécio

Por Raymundo Costa, do Valor Econômico

O presidenciável tucano Aécio Neves tem um Plano B, para o caso de não concorrer à Presidência: disputar o governo de Minas Gerais, pois Antonio Anastasia não tem mais direito à reeleição e o grupo hoje no poder não vê outra opção para vencer em 2014. O Plano B de Aécio é a cada dia um Plano B+, que pode se transformar em Plano A, sobretudo se Luiz Inácio Lula da Silva for o candidato do PT à sucessão de Dilma Rousseff. De certa forma, Aécio tem frustrado as expectativas que os tucanos depositavam na sua liderança para voltar ao poder daqui a quatro anos.

A perspectiva de poder, às vezes, é mais forte que o poder em si. Se não esperava tanto de Aécio, o PSDB, após as eleições de 2010, contava ao menos que o ex-governador de Minas, a esta altura, já tivesse se firmado como alternativa incontestável a Dilma, Lula e ao PT. Mas paira no ninho uma reversão de expectativas - real e que ainda pode ser contida, mas que deixa perplexo o partido.

A atuação de Aécio, em cinco meses de Senado, é talvez o melhor exemplo do anticlímax. Demorou a falar. Quando subiu à tribuna, pronunciou um discurso vazio. Evidentemente, com a fama que o precedia, foi prestigiado com um plenário cheio e muitos apartes. Mas de concreto sobraram apenas os elogios dos governistas - que o proclamaram líder da oposição e o candidato presidencial do PSDB em 2014 -, e a sensação dos oposicionistas de que Aécio não se preparou para se apresentar como uma opção aos 12 anos de governo que o PT estará por completar nas próximas eleições presidenciais.

Tucanos começam a ter dúvidas sobre candidato em 2014

Faltaram, ao discurso, brilho intelectual e uma visão de Brasil como tinha, por exemplo, o avô do senador, o presidente Tancredo Neves, morto antes de tomar posse no cargo, em 1985. Mesmo alguns improvisos de Tancredo tinham estilo e conteúdo. Se falta um projeto e uma ação legislativa mais firme, qual será a arma de Aécio em 2014? A simpatia, a média com os companheiros, o chamado estilo mineiro de fazer política?

No Senado, Aécio se destacou por duas proposições: a emenda à Lei de Diretrizes Orçamentárias para o governo incluir no Orçamento Geral da União as emissões do Tesouro para o BNDES, algo hoje em torno dos R$ 240 bilhões, e um projeto de mudanças radicais no processo de edição de medidas provisórias.

A emenda para tornar mais transparentes as emissões do Tesouro passou no Congresso, teve sucesso de parte da crítica especializada, mas foi impiedosamente vetada pela presidente Dilma Rousseff nos seguintes termos: "A inclusão de todas as emissões na peça orçamentária representaria uma sinalização prévia de emissões estratégicas a serem feitas pelo Tesouro Nacional ao longo de cada exercício, possibilitando aos agentes econômicos anteciparem seus movimentos no mercado de títulos públicos, com impactos e riscos à gestão da dívida pública federal". Só faltou chamar Aécio de ingênuo.

No caso das medidas provisórias Aécio tomou carona na onda de protestos dos senadores pelo pouco tempo de que dispõem para analisar as MPs, depois que elas são aprovadas na Câmara - houve casos já de a Câmara aprovar um texto pela manhã e o Senado ser obrigado a referendá-lo à tarde, para não perder prazos regimentais. O ambiente era tão ruim que o próprio presidente do Senado, José Sarney, tomou a iniciativa de apresentar um projeto regulamentando a tramitação e a emissão de MPs.

Aécio percebeu na situação uma oportunidade e apresentou um projeto bem mais ousado que, entre outras coisas, previa a criação da uma supercomissão para analisar a admissibilidade das MPs enviadas pelo Executivo ao Congresso. Prevaleceu o projeto de Sarney, que atendia o principal: a garantia de que os senadores terão mais tempo para estudar as medidas (80 dias, a Câmara, 30, o Senado e mais dez a Câmara, se os senadores fizerem mudanças no texto dos deputados). Relator do acordo que permitiu a aprovação do projeto, Aécio pode posar de pai da mudança do processo atual, resultado de uma mudança feita quando o senador, então deputado, presidia a Câmara.

Politicamente, Aécio mantém uma relação amena com o governo. Para os governadores do PSDB, "função de governador não é fazer oposição", como fizeram questão de deixar bem claro já em duas reuniões. Mas também ficou claro que essa seria a tarefa das bancadas. A elas caberia realçar as diferenças entre os projetos do PSDB e do PT. Em sua maioria, senadores e deputados gostariam de ver seu eventual candidato em 2014 com uma postura mais crítica em relação ao governo, principalmente agora com a aproximação das eleições municipais.

Na prática, a aproximação de Aécio do governo Dilma parece a muitos tucanos mais um capítulo da guerra com José Serra. Uma estratégia destinada a identificar Serra como oposição radical, enquanto mantém abertos os canais administrativos com o governo federal. O discurso replicado em Minas é de que "todos os problemas do Estado são de responsabilidade do governo federal". Belo Horizonte, diga-se, é a única grande capital brasileira que não tem um metro de linha de metrô (tem um trem de subúrbio que é chamado de metrô).

Apesar das dificuldades políticas do semestre de Dilma, o PSDB é o mesmo partido dividido que perdeu as três últimas eleições para o PT. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi o único até agora a apresentar um comando conceitual para a sigla, mas não foi ouvido e até mesmo criticado. A cúpula tucana ridicularizou um documento em que Serra tentou alinhavar algumas ideias para a discussão. FHC aceita feliz o reconhecimento de Dilma pois acha que passou a ser detestado pela maioria da população por causa de Lula e do PT. A campanha deixou sequela na relação de Serra com Dilma, que já foi melhor.

Agora, há quem lembre que em 2002 Aécio hesitou em sair candidato ao governo de Minas. É menor a figura do messias tucano. O pior é que começa a crescer no PSDB a sensação de que Aécio teme o enfrentamento com Lula, mesmo que seja para acumular capital para 2018. Na cúpula tucana já se avalia que candidatura presidencial de Aécio precisa de um bom "choque de gestão". Ou Serra pode outra vez "fazer acontecer".

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília

segunda-feira, agosto 22, 2011

Repercussões Nacionais das Eleições Municipais

Artigo de Marcos Coimbra, publicado no Correio Brasiliense

No meio político, as eleições municipais do próximo ano já começaram. Para o cidadão comum, ainda são um assunto distante, em relação ao qual o interesse é mínimo. Quando, nas pesquisas, se pede aos entrevistados que respondam como “se as eleições fossem hoje”, ficam perplexos. A vasta maioria nem se lembra que voltaremos às urnas em tão pouco tempo.

Toda vez que se inicia a temporada dessas eleições, surgem especulações sobre as consequências de seus resultados na política nacional. É como se todos concordassem com a premissa de que existem e são ponderáveis.

Em alguns países do mundo, tipicamente nos menores, a vida política local costuma interagir intensamente com a nacional. O que acontece nas cidades, inclusive as pequenas, repercute de fato no conjunto do sistema político. É o caso, por exemplo, de certas democracias do norte da Europa.

No Brasil, pensando em termos de seu impacto no encaminhamento das questões nacionais, as eleições municipais já foram muito mais importantes que hoje.

Nos menos de 20 anos que durou a República de 1945, elas desempenharam um papel inteiramente diferente do que passaram a ter depois da redemocratização. Conquistar prefeituras, possuir boa representação no maior número possível de Câmaras de Vereadores, eram elementos cruciais para os partidos nas eleições estaduais e presidenciais.

Essa importância decorria, fundamentalmente, das características socioeconômicas e culturais prevalecentes em nosso eleitorado. Com uma expressiva proporção da população vivendo no interior, em cidades pequenas e com contatos esporádicos com as capitais estaduais e as metrópoles, a política nacional chegava a essas pessoas filtrada pela realidade local.

A influência das lideranças de cada cidade, sua ascendência sobre comportamentos e atitudes dos eleitores e, portanto, sua capacidade de orientar e dirigir decisões de voto eram incomparavelmente maiores que hoje em dia. Um partido que tivesse sólidas “bases municipais” estava com meio caminho andado para alcançar bom desempenho nas eleições gerais.

Um dos elementos fundamentais de diferenciação entre aquele Brasil e o de hoje é a comunicação de massa. Salvo o rádio de ondas curtas, nada integrava eleitores vivendo nas várias partes do país.

Não existia a televisão em rede nacional (muito menos as formas mais modernas de comunicação eletrônica).

Em função disso, eram diferentes os modos de fazer campanha e estruturar a comunicação entre candidatos e eleitores. Só havia dois caminhos básicos para a apresentação das candidaturas e suas plataformas. Diretamente, através da presença física dos candidatos em eventos públicos, como comícios e assembleias. Indiretamente, através da intermediação das chefias partidárias locais. Ou o candidato ia aos municípios (para o que era imprescindível ter apoio local) ou alguém passava a ser seu porta-voz na localidade, falando por ele.

Mudamos tanto, de lá para cá, que não faz sentido raciocinar com essas categorias. O eleitor brasileiro médio é muitas vezes mais autônomo em relação às lideranças municipais e tem condições de se informar sozinho sobre quem são e o que representam os candidatos ao Legislativo, aos governos estaduais e, especialmente, à Presidência da República.

Por esses motivos, a discussão sobre os efeitos de 2012 sobre 2014 é, em grande parte, uma perda de tempo. Como foram as que fizemos nos últimos anos, em situação semelhante. Nenhuma das eleições municipais que tivemos de 1988 em diante teve consequências significativas nas presidenciais seguintes.

Quem gosta de sublinhar sua importância são as lideranças de alguns partidos, a exemplo do PMDB e, em escala menor, o DEM e o PTB. Como são organizações estruturadas em quase todos os estados, saem-se bem nos balanços que se fazem depois de apurados os resultados municipais. Com isso, incham o peito, proclamam-se vencedores e valorizam seu passe.

Compra quem quer. Na política, também há maus negócios.

Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi

segunda-feira, agosto 15, 2011

A internet não é tão democrática

Artigo de Renato Janine Ribeiro, publicado no Valor

Sou fã da internet. Graças a ela, confiro datas, citações e muito mais, cada vez que escrevo. Descubro autores e ideias novas. Tenho, claro, que tomar cuidado com o que leio, porque há informações sem conhecimento, afirmações sem base. Mas também acho democrático que a rede permita difundir valores que antes não tinham lugar. Um jornal é um produto caro, por seus custos industriais e de distribuição. Daí que seja difícil fazer um jornal, como antes se dizia, alternativo. Já um blog pode ser barato - e servir de contraponto aos jornais maiores, expondo valores diferentes (como os blogs de esquerda fazem, no Brasil), oferecendo análises, algumas delas boas, ou, ainda, produzindo informação própria (o que é o mais raro - só lembro o caso de Geisy Arruda, revelado pelo Boteco Sujo).

Mas a maior esperança que muitos tiveram, inclusive eu, foi que a internet se mostrasse uma grande ágora, o espaço de uma cidadania global, um fórum de democracia quase-direta. A palavra grega - que significa a praça onde os cidadãos deliberam sobre assuntos públicos - parecia caber perfeitamente ao terreno virtual, em que todos adquirem igual cidadania e debatem temas de interesse geral. Ao pé da letra, a internet é republicana, porque abre lugar para a "res publica", a coisa pública. Assim, quando concorri à presidência da SBPC, em 2003, criei uma página na Web para a campanha; ela até surtiu efeito, pois tive uma boa votação (tratei do assunto em meu livro "Por uma nova política", Ateliê editorial). 

Por ora, o que lamento é que, ao contrário do esperado, o espaço virtual exponha pouca divergência e pouca reflexão. Quase sempre, escreve num blog quem compartilha as ideias do blogueiro. Esse é o primeiro problema. A internet é democrática porque torna mais fácil surgir a divergência, limita o quase-monopólio da mídia tradicional, impressa ou não - mas a divergência que ela admite está no confronto entre os sites, não dentro de um site que seja, ele mesmo, democrático. Ou seja, a internet é democrática porque encontramos URLs para todos os gostos - mas não porque algum portal abrigue uma discussão inteligente sobre um assunto de relevo. A democracia dela está em que os vários lados têm como e onde se expressar. Mas não está na tolerância. A internet é democrática na luta entre os sites - não dentro deles, embora alguns tentem, heroicamente, fazer funcionar a democracia do debate e do respeito mútuos.

Os leitores são mais radicais, às vezes, que os próprios blogueiros. Vejamos o blog de Luis Nassif que, por exemplo, não esconde seu respeito pelas "raposas políticas" mineiras e publica posts de quem diverge dele. Só que os comentários dos leitores estão, na maioria, divididos entre a condenação, a ridicularização e a acusação. O debate esquenta, mas isso não quer dizer que os leitores respeitem a opinião alheia. Isso também acontece em órgãos da imprensa. É comum os leitores radicalizarem a posição do jornal ou do blog.

Até aqui, discuti o caráter pouco democrático - considerando um aspecto fundamental da democracia, que é o respeito ao outro, a liberdade de divergir - da internet. Mas há outro ponto importante. É que a democracia funciona melhor quando ela é produtiva. Em outras palavras, se a democracia não melhorar as condições de vida mas, ao contrário, piorá-las, nosso apreço por ela dificilmente se manterá. É triste lembrar isso, mas a democracia não é fim em si. Quando a República de Weimar levou a Alemanha a um impasse, deu no nazismo. Os constitucionalistas aprenderam com isso e as constituições recentes evitam ao máximo as falhas que permitiram o advento do regime mais criminoso da história moderna.

A questão, então, é: a internet, enquanto espaço em que se exprimem diferentes opiniões, não tanto no interior de cada unidade sua (portal, blog, site), mas delas entre si, é produtiva? Ela gera ideias novas, propostas, mudanças? Receio que pouco. Noto isso pela fraqueza da argumentação. É frequente haver comentários que são reações epidérmicas irritadas, imediatas, mais do que um pensamento. Nada proíbe as pessoas de se exprimirem. Nada as obriga, também, a pensar. Mas, quando se torna fácil divulgar urbi et orbi o que cada um acha, muitos sentem que é mais fácil escrever do que ler.

Hemingway dizia, de um desafeto: "He is not a writer. He is a typist". Pois há pessoas que não escrevem, digitam. Ou que escrevem sem ter lido o assunto em pauta e, pior, emitem julgamentos peremptórios. Recentemente, notei isso quando postei no Facebook um artigo de um analista que respeito, colaborador aqui no Valor, e algumas pessoas o atacaram severamente. Direito delas. Mas uns três confessaram só ter lido minha chamada de 420 caracteres, não o artigo que estava linkado. Ora, como se pode julgar algo ou alguém sem ler? Por espantoso que pareça, esse pequeno fato transmite a impressão de que é mais fácil escrever do que ler. Fácil, talvez seja; mas não quer dizer que seja melhor. Sempre houve mais leitores do que escritores. A internet inverte esse dado, talvez, mas ganha-se com isso? É perigoso quando as pessoas nem escutam direito o pensamento dos outros.

Em suma, o que falta para a internet ser o tão almejado espaço de criação democrática de ideias e projetos? Primeiro, o respeito ao outro. Segundo, uma argumentação racional. Não basta reagir com o fígado. Talvez, terceiro, seja preciso tempo: ler com atenção, refletir, só depois postar. A internet favorece a imediatez. Isso não ajuda a amadurecer o pensamento. Mas ela continua sendo uma arma poderosa, notável. Só que é preciso melhorá-la, e muito.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

E-mail rjanine@usp.br 

domingo, agosto 07, 2011

Sem exemplos para seguir

Entrevista do cientista político Fernando Limongi, publicado no Valor

Fernando Limongi, um dos principais nomes da ciência política nacional, questiona tese de que governo Dilma corre riscos e diz que crise financeira põe em xeque modelos dos EUA e Europa.

No tempo em que se dizia que o país precisava de reforma política para se tornar governável, Fernando Limongi publicou o livro definitivo - "Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional" (1999) - mostrando voto a voto que o Executivo não tinha embaraços em formar maioria. Quando o debate passou a ser dominado pela fisiologia paralisante das comissões de Orçamento, novo livro, também em parceria com Argelina Figueiredo - "Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão" (2008) - mostrava que as emendas comprometem migalhas do investimento e que, ao rifá-las da lei orçamentária, se arriscava a empobrecer a representação.

Aos 53 anos, professor titular de ciência política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que presidiu de 2001 a 2005, Limongi continua incomodado. Não aceita a tese de que a amplitude da base aliada é a raiz dos problemas da presidente Dilma Rousseff nem que seu governo começa sob mais turbulência que os precedentes.

Em entrevista ao Valor, afirma que a maior novidade da conjuntura política brasileira é a unidade do PMDB, mas ainda se confessa aturdido pela tendência de fragmentação do quadro partidário que acreditava estar em processo de reversão.

Diz que a crise política por que passa o governo Barack Obama revela uma crise decisória no sistema político americano que não deveria servir de inspiração para nenhuma das democracias emergentes. E lança uma provocação aos compatriotas que não conseguem enxergar nenhum outro país mais corrupto que o Brasil: "Não há como medir a corrupção. Todos os indicadores são baseados em percepção que é um nome bonito para "pré-conceito". É possível obter uma correlação quase perfeita entre índices desse tipo e pigmentação da pele. Os países africanos em geral aparecem como os mais corruptos e os escandinavos como os menos".
A seguir, a entrevista:

Valor: O governo Dilma Rousseff mal começou e já trocou dois ministros. Aliados se dizem apreensivos com seu estilo. Teme-se que colha troco lá na frente. Dilma corre o risco de se inviabilizar?

Fernando Limongi: Se você acompanha o início do [Fernando] Collor, do Fernando Henrique e do [Luiz Inácio] Lula [da Silva], todos começaram com um rearranjo muito profundo das bases. Collor superestimou seu poder e precisou reformular o ministério. FHC começou com um governo majoritário para aprovar legislação ordinária, mas minoritário para reforma constitucional. Para passar a reforma da Previdência, chamou o PP e rearrumou a coalizão. Lula também começou minoritário. Na primeira fase o [ex] PFL e o PSDB cooperaram, depois ele também refez o ministério.

Valor: A base excessivamente heterogênea do governo não é fonte permanente de tensão?

Limongi: O que ocorreu com o [Antonio] Palocci também ocorreu no governo FHC, que teve uma crise no caso de escuta telefônica na Casa Civil [conversa grampeada entre o embaixador Júlio Cesar dos Santos e o representante da Raytheon, empresa que disputava o Sivam, levou à queda do chefe de gabinete do presidente, Xico Graziano]. Esse tipo de problema sempre acontece. Os governos sempre custam a engrenar e a encontrar seu ponto de equilíbrio. Dilma, por ter maior continuidade com Lula - com o fim do governo, não com seu início -, parecia que não ia ter esse problema de ajuste, mas é sempre difícil botar a coisa pra funcionar. O governo começa, tenta achar o prumo e encaixar as peças. É o contrário da ideia da lua de mel, do período de graça. Só com o início de governo é possível saber se as pessoas combinam com os cargos e as lideranças são de fato exercidas. Lula só foi achar o prumo quando Dilma subiu para a Casa Civil e botou a máquina para andar. Até lá, a visão era toda negativa porque a coisa não funcionava. Tinha-se grande expectativa de que [José] Dirceu ia ser o condutor, mas ele se mostrou muito aquém das expectativas. Além do mensalão, só deu problema e nunca foi o homem da máquina que se esperava.

Valor: Essa fase inicial de ajustes pode ser semelhante a outros governos, mas a base dela é mais ampla do que a de qualquer outro. São 17 partidos na base, sendo 7 representados no governo. A dificuldade de abrigar todos no primeiro escalão não é parte da explicação?

Limongi: Pode ser, mas não há evidências de que esse é o problema. Do ponto de vista das evidências, o que chama a atenção, e não se dá a devida atenção, é que o PMDB tem votado absolutamente disciplinado. Ter votado 100% unido no salário mínimo e no Código Florestal não é pouca coisa. O PMDB nunca teve essa unidade.

Valor: Qual é sua leitura dessa unidade?

Limongi: Essa unidade é politicamente construída. [Michel] Temer exerce uma liderança sobre a bancada que ninguém nunca teve. O PMDB sempre esteve em todos os governos, mas nunca com essa disciplina. Isso é disciplina de PT. O PMDB hoje tem mais cadeiras e representação nacional do que qualquer outro partido. Está jogando diferente. Se há tensão no interior da base por espaço, o PMDB vai ocupá-lo. O partido já não era pequeno no fim do governo Lula. E agora joga com unidade para aumentar seu espaço. Todo mundo falou do seu lado fisiológico ou ruralista no Código Florestal. Até pode ser que o PMDB tenha sido majoritariamente ruralista, mas e o PCdoB, que votou igual?

Limongi: É parte da estratégia política do PMDB, e não necessariamente o partido é o mal. Não existe um lado do bem e do mal, como todo mundo tende a ler. Meus filhos de cinco e oito anos podem pensar assim, mas as coisas são muito mais complexas. O Código Florestal tinha muitos lados, vi alguns debates e não conseguia saber de que lado eu estava. Ninguém, no fundo, sabia de que lado estava.

Valor: Mas o fato é que o governo foi derrotado na votação...

Limongi: Em situações semelhantes outros governos sempre foram mais ambíguos, mais coniventes e dançaram conforme a música. Dilma bateu ficha numa questão difícil. FHC e Lula sempre fugiram pela tangente nessas horas, fizeram algum acordo que diluía o embate. Lula decidia por decreto no tema. Dilma não diluiu. Talvez tenha sobre-estimado forças, não tenha querido voltar atrás, perder imagem. Ex post foi desnecessário, até porque ainda tem Senado e a negociação vai e volta.

Valor: A base excessivamente heterogênea do governo não é fonte permanente de tensão?

Limongi: O que ocorreu com o [Antonio] Palocci também ocorreu no governo FHC, que teve uma crise no caso de escuta telefônica na Casa Civil [conversa grampeada entre o embaixador Júlio Cesar dos Santos e o representante da Raytheon, empresa que disputava o Sivam, levou à queda do chefe de gabinete do presidente, Xico Graziano]. Esse tipo de problema sempre acontece. Os governos sempre custam a engrenar e a encontrar seu ponto de equilíbrio. Dilma, por ter maior continuidade com Lula - com o fim do governo, não com seu início -, parecia que não ia ter esse problema de ajuste, mas é sempre difícil botar a coisa pra funcionar. O governo começa, tenta achar o prumo e encaixar as peças. É o contrário da ideia da lua de mel, do período de graça. Só com o início de governo é possível saber se as pessoas combinam com os cargos e as lideranças são de fato exercidas. Lula só foi achar o prumo quando Dilma subiu para a Casa Civil e botou a máquina para andar. Até lá, a visão era toda negativa porque a coisa não funcionava. Tinha-se grande expectativa de que [José] Dirceu ia ser o condutor, mas ele se mostrou muito aquém das expectativas. Além do mensalão, só deu problema e nunca foi o homem da máquina que se esperava.

Valor: Essa fase inicial de ajustes pode ser semelhante a outros governos, mas a base dela é mais ampla do que a de qualquer outro. São 17 partidos na base, sendo 7 representados no governo. A dificuldade de abrigar todos no primeiro escalão não é parte da explicação?

Limongi: Pode ser, mas não há evidências de que esse é o problema. Do ponto de vista das evidências, o que chama a atenção, e não se dá a devida atenção, é que o PMDB tem votado absolutamente disciplinado. Ter votado 100% unido no salário mínimo e no Código Florestal não é pouca coisa. O PMDB nunca teve essa unidade.

Valor: Qual é sua leitura dessa unidade?

Limongi: Essa unidade é politicamente construída. [Michel] Temer exerce uma liderança sobre a bancada que ninguém nunca teve. O PMDB sempre esteve em todos os governos, mas nunca com essa disciplina. Isso é disciplina de PT. O PMDB hoje tem mais cadeiras e representação nacional do que qualquer outro partido. Está jogando diferente. Se há tensão no interior da base por espaço, o PMDB vai ocupá-lo. O partido já não era pequeno no fim do governo Lula. E agora joga com unidade para aumentar seu espaço. Todo mundo falou do seu lado fisiológico ou ruralista no Código Florestal. Até pode ser que o PMDB tenha sido majoritariamente ruralista, mas e o PCdoB, que votou igual?

Limongi: É parte da estratégia política do PMDB, e não necessariamente o partido é o mal. Não existe um lado do bem e do mal, como todo mundo tende a ler. Meus filhos de cinco e oito anos podem pensar assim, mas as coisas são muito mais complexas. O Código Florestal tinha muitos lados, vi alguns debates e não conseguia saber de que lado eu estava. Ninguém, no fundo, sabia de que lado estava.

Valor: Mas o fato é que o governo foi derrotado na votação...

Limongi: Em situações semelhantes outros governos sempre foram mais ambíguos, mais coniventes e dançaram conforme a música. Dilma bateu ficha numa questão difícil. FHC e Lula sempre fugiram pela tangente nessas horas, fizeram algum acordo que diluía o embate. Lula decidia por decreto no tema. Dilma não diluiu. Talvez tenha sobre-estimado forças, não tenha querido voltar atrás, perder imagem. Ex post foi desnecessário, até porque ainda tem Senado e a negociação vai e volta.

Valor: E o combate à corrupção não passa pelo corte dessas ramificações?

Limongi: A gente não tem nenhuma forma de saber se a corrupção aqui é mais alta ou mais baixa do que no resto do mundo. O problema é óbvio: como se mede corrupção? Não pode ser medida objetivamente por razões óbvias. Os indicadores normalmente usados em pesquisas comparadas são indiretos e se referem à percepção. Muitas vezes essa percepção é um nome mais bonito para "pré-conceito". Eu brinco que é possível obter uma correlação quase perfeita entre esses índices e pigmentação da pele. Os países africanos em geral aparecem como os mais corruptos e os escandinavos como os menos. Todas as indicações são de que a corrupção aqui é como em qualquer outro lugar. A Inglaterra, com esse escândalo da imprensa, mostra que quando os interesses privados chegam junto do Estado você não consegue mais distingui-los. De repente o cara está na Scotland Yard, de vez em quando ele está no jornal, ele vai na Scotland Yard... Esse é o jeito que os interesses se constroem. Não tem saída para isso. É um problema de assimetria de informações. Como é que você vai ter um setor de empreiteiras que seja verdadeiramente competitivo? Três ou quatro grandes empresas vão controlar o mercado. E quem vai contratar esses caras? No fim é o cara que era da empreiteira e foi para o Estado e de lá para o setor privado, e esses interesses acabam não se distinguindo como se gostaria.

Valor: O sr. diz que não há como medir se o Brasil é mais ou menos corrupto do que outros países. A que o sr. atribui, então, a difusão dessa convicção entre os brasileiros?Limongi: É puro "pré-conceito". Quem acompanha política em outros lugares do mundo sabe que coisas feias acontecem em todo lugar. Uma vez fui fazer uma conferência para banqueiros na Europa. Eles queriam saber como funcionava o sistema político brasileiro. Fui lá e mostrei que funcionava bem, que tinha lógica, que a forma como eles entendiam os sistemas políticos europeus poderiam ser usadas para entender o Brasil. Daí, no debate, um senhor começou a me espinafrar, dizendo que estava cansado de ouvir que os políticos brasileiros eram confiáveis, que as coisas aqui eram OK, e quando ele abria o jornal só lia notícias desabonadoras quanto às nossas práticas políticas, que o governo brasileiro só fazia aumentar o déficit. Quando ele acabou de falar, eu estava meio nas cordas e para ganhar tempo perguntei de que país ele vinha. Ele respondeu: Itália. Não precisei responder. Só "I see" com riso meio cínico bastou.

Valor: O sr. vê alguma relação entre a perda de prerrogativas legislativas e a ocupação dos aliados em desencavar os podres da República? As MPs têm saído com mais de 50 temas, tanto que uma recebeu o nome de "árvore de Natal"...

Limongi:: Na entrevista do Temer para o Valor, ele começa falando: "Participei de um grupo que elaborou uma medida provisória. Nós ficamos estudando e todo mundo participou". Então quem fez a medida? Dilma não tem tempo para fazer isso. Quando sai uma MP, não é uma decisão unilateral do Executivo.

Valor: Pode ser uma costura partidária, mas que foge do âmbito legislativo...

Limongi: Se está saindo como "árvore de Natal" é porque todo mundo já deu "pitaco". Quando o texto começa a tramitar, não foi Deus quem o criou. Todo mundo já botou a mão. O texto não é confeccionado a portas fechadas.

Valor: Mas a oposição não participa...

Limongi: Nem é para participar. Tem a tramitação para espernear. Quando passou a reforma das MPs no governo FHC, todo mundo achou que estava fazendo uma grande coisa. E, na verdade, foi um desastre institucional. A MP tramitava no Congresso, em sessão conjunta da Câmara e do Senado. Não atrapalhava a tramitação dos demais projetos nem travava a pauta. Agora a medida passa pela Câmara, depois vai para o Senado, tem um tempo para correr, e tem que apresentar emenda aqui e lá, mas ninguém sabe como funciona. O fato é que se o Congresso quiser rejeitar uma medida porque não é pertinente à matéria em tramitação, derruba. O regimento garante. Não tem essa de nosso Legislativo estar subjugado, isso é tudo bobagem.

Valor: Num artigo polêmico, FHC disse que a política tem que ser buscada fora das instituições, nos jovens e na internet. A maior surpresa de 2010, Marina Silva, não veio desse mundo?

Limongi: Marina, de fato, surpreendeu. Mas só foi tão bem votada porque Serra e Dilma perderam votos. Lula polarizou demais no fim da campanha, chamou para a briga e tirou votos de Dilma, que, pelo desempenho da economia, teve um resultado eleitoral aquém do esperado no primeiro turno. Tanto que seguraram Lula no segundo. José Serra cresceu, mas puxando um voto que não era dele, de quem achava que, por ter religião, não podia votar em Dilma. Foi um voto que também beneficiou Marina. Teve a coisa religiosa que surpreendeu todo mundo. Marina não conseguiu segurar nem o PV. Então tem um apoio muito difuso e desorganizado para ser considerado um trunfo. Tirante o PT, nenhum partido consegue penetrar na sociedade, mas o que os petistas têm de voto é muito mais do que têm de militância e penetração. É outro modelo de partido daquele do pós-guerra, que tinha células, militância, cobrava contribuição, fazia jornal e tinha escolinha. Hoje partido não precisa disso, vai à TV. Se é isso que FHC quer dizer, realmente mudou e não apenas no Brasil. Mas não é de hoje.

Valor: A internet, então, ainda vai demorar a dar as cartas na política?

Limongi: Deve ter muita gente tentando transformar o que se passa na internet em voto. Não vai ser espontâneo. FHC é sociólogo e sabe que não há nada de espontâneo nesse mundo de meu Deus. Tem que ter coisa organizada, estruturada. Onde isso tudo junta? No modelo institucional da eleição majoritária. Por isso PT e PSDB têm vantagem. Porque polarizam as eleições e coordenam a competição. PT e PSDB saem na frente na hora de lançar candidato à Presidência. Vai ter um candidato do PSDB, um do PT e uma terceira via. Marina vai ter que correr por fora para montar uma estrutura de campanha. Não vai ter os governos estaduais do PSDB nem a estrutura de governo federal do PT. Não vai ganhar pelo Twitter, até porque as pessoas, para votarem nela, precisam saber que ela tem chance de ganhar. Uma candidatura desastrosa do PSDB poderia fazer isso. Mas o PSDB teria que pisar muito na bola. A história é cheia de partidos que dilapidam patrimônio brigando internamente. Serra já fez isso uma vez e ameaça repetir ao resistir a ceder a liderança.

Valor: Se a tendência de polarização na eleição presidencial é tão forte assim, por que não afeta a disputa pelo Congresso?

Limongi: O resultado mais intrigante dessas eleições foi o descasamento entre as eleições majoritárias e proporcionais. A eleição presidencial vertebra a disputa nos Estados, que foi totalmente casada com a presidencial. Em todo Estado teve o candidato da Dilma e do Serra. E o PMDB ora jogou com um, ora com o outro. Agora, no Congresso, os sinais de que o número de partidos estava diminuindo desapareceram. E não apenas porque PP, PDT, PTB, que eram partidos médios, caíram e se igualaram ao PR ou ao PSB. PMDB, PT e PSDB também caíram. Pode ter a ver com esse terreno pantanoso que saiu da órbita do PSDB e caiu na do PT, mas ainda não está fazendo muito sentido. O que parece de fato diferente é essa coisa de o PMDB votar unido.

Valor: Esse pacto político pela distribuição de renda, contra o qual ninguém se rebela, não é o substrato dessa fragmentação tão acentuada?

Limongi: Há uma certa indistinção entre o PT e o PSDB quanto às propostas. A gente não sabe o que o PSDB teria para fazer de diferente do PT. O discurso do Serra foi da eficiência, faço-melhor-do-que-eles-que-só-seguem-nossa-cartilha. Mas não deu certo. O PSDB não tem realmente uma agenda alternativa. O PT, enquanto na oposição, conseguia fazer uma imagem de que era diferente e tal, que depois com o mensalão se viu que não era tão diferente assim.

Valor: E como conseguem polarizar o eleitorado se não têm propostas diferentes?

Limongi: Não é fácil entender qual é a percepção que de fato os eleitores têm dos partidos, se os veem ou não como diferentes e se essas diferenças são programáticas ou de outra natureza. Para saber essas coisas é preciso fazer pesquisa de opinião, entender como os eleitores organizam a disputa partidária na cabeça. E quando a gente lê pesquisa bem feita sobre esse tipo de coisa sempre acaba se surpreendendo. O que me parece interessante é que os partidos brasileiros podem não estar organizados como estavam os da Europa do pós-guerra, mas a divisão do eleitor é forte. Todo mundo diz que brasileiro é pouco politizado. Mas é o contrário. Nessa última eleição presidencial, minha filha mudou de escola e passei a levá-la à casa das novas amiguinhas. Chegava lá e os pais me perguntavam: "Voto em tal partido, e você?" Ouvi inúmeras vezes no metrô gente falando em quem iria votar. Passei duas eleições presidenciais nos Estados Unidos sem ouvir nenhuma pessoa falar sobre eleição presidencial. E estava dentro do departamento de ciência política de uma universidade. Isso é impensável no Brasil. Todo mundo emite opinião política o tempo inteiro. E todo mundo declara suas preferências. E isso não pode se dar sem que os partidos desempenhem um papel. O voto é obrigatório, mas sempre se pode votar em branco ou nulo. E, se os partidos não fossem capazes de mobilizar eleitores, a taxa de votos brancos e nulos deveria ser muito alta. Até foram em algumas eleições, mas caíram violentamente com o voto eletrônico. É possível que votações como a de Enéas, Clodovil e Tiririca venham de eleitores que os partidos não conseguem mobilizar. Sempre há um candidato com discurso antipolítica para o qual um caminhão de eleitores converge.

Valor: Muito se especula sobre o vetor político da chamada nova classe média. Essa seria a última eleição da distribuição de renda?

Limongi: Acho que leva algumas gerações para a ascensão social virar conservadorismo. Não acredito que o cara que subiu na vida em dois anos vai ficar defendendo o dele e virar conservador. O eleitor pode ser extremamente volátil, no sentido de que, se o PT amanhã vem com uma crise econômica e esses ganhos são perdidos de um governo para o outro, o eleitor pode se bandear para a oposição. Com isso estou de acordo. Foi o que aconteceu no segundo mandato de FHC. No primeiro, ele estava com tudo, distribuiu renda e fez crescer. Veio a crise, o eleitor bandeou para o outro lado. Mas se o crescimento se mantiver não vejo esse cenário.

Valor: A última vez em que a política balançou o mercado foi na eleição de 2002. De lá para cá, entra mensalão, sai mensalão, entra PR, sai PR, e a política não abala mais a economia. Por que houve esse insulamento? Por que ninguém se arrisca a mexer no dito tripé da economia?

Limongi: Não sei se foi a política ou se foi a economia que se insulou. No fim do governo, Lula fez um certo keynesianismo e ninguém se insurgiu contra. Até porque se saíssem batendo poderiam colher rejeição eleitoral. Os políticos observam e esperam se vai dar resultado. Se der, não criticam. Na hora em que der errado, a oposição vai sair criticando e aí o PSDB vai montar seu discurso alternativo. Se a economia continuar bem até 2014, não vai haver plano alternativo. O fato é que todo mundo foi surpreendido pelas mudanças estruturais no mercado de trabalho do Brasil, muito mais significativas que a Bolsa Família. O mundo político também parece ter sido surpreendido pelas conexões do Brasil com a China, que o tornaram menos dependente dos Estados Unidos.

Valor: Se a gente olha para o Congresso americano, vê o fracasso tanto das tentativas de aprovar uma regulação mais rígida para o mercado financeiro quanto esse embate republicano com o Obama. Como é que o sr. vê a resposta da política à crise financeira?

Limongi: A má qualidade do sistema politico americano é uma coisa inacreditável. Quem fica falando que o sistema brasileiro não funciona é porque não conhece o americano. Se tem um sistema político travado, parado, incapaz de produzir decisão, é o americano. É um sistema em que a Presidência tem pouco poder efetivo, depende muito de um Congresso que é capaz de barrar e está repleto de traidores. [Paul] Krugman afirmou em artigo recente que esse limite de endividamento foi renegociado e ampliado mais de uma vez ao longo do governo Bush. Que rever e readaptar o limite à realidade não teria consequência econômica alguma. Que o ponto é pura ideologia. Que os republicanos querem nocautear o Obama. Creio que ele esteja certo. Acompanhei in loco a reforma da saúde pública. Vi e ouvi os argumentos dos republicanos. É pura ideologia. Desculpe o exagero, mas é realmente primitivo. O reacionarismo é impressionante. E já radicalizaram dessa forma no passado. Fecharam o governo Clinton ao não aprovar o Orçamento. Tomaram uma tunda depois. No que fechou o governo, a população se voltou contra os republicanos.

Valor: Foi naquele momento que Clinton conseguiu a reeleição, não foi?

Limongi: Clinton estava morto e aí eles resolveram pisar em cima e espicaçar. E aí o Clinton renasceu e foi reeleito. Então é mais ou menos a mesma situação que Obama, só que agora em proporções muito maiores. A única coisa que os republicanos querem é corte de gasto e de imposto. Estão criando um sistema inviável. Todos os dados que se tem sobre desigualdade nos Estados Unidos mostram que aumentou uma barbaridade no governo republicano porque se cortou imposto no topo e gasto para base sem se conseguir, com isso, dar impulso à economia. É um exemplo de mau funcionamento do sistema político inacreditável. Faz a gente falar "puxa, estamos numa maravilha!"

Valor: Os EUA, ao contrário do Brasil, não têm um Congresso que reproduz mais ou menos as mesmas divisões da eleição presidencial?

Limongi: Nos Estados Unidos você tem a eleição presidencial e o "coattail", que é o efeito do voto puxado pelo presidente sobre o Congresso. Mas depois você tem reversão no meio do ano - em geral, o partido do presidente perde cadeira no meio do mandato. Quanto perde é que varia. Obama perdeu muito porque o americano médio é da direita brava. Se existe um sistema político que dá veto a minorias, esse sistema é o americano. No Senado há o que se chama de "filibuster", que é basicamente o direto de a minoria estender indefinidamente o debate, evitando que a matéria venha a voto. Se a minoria é contra, a coisa não vem a voto. Bloqueia. Para tudo. O que Obama passou de reforma da Previdência foi um negocinho desse tamanho sob um custo inacreditável. Aqui o presidente passaria aquilo tranquilo.

Valor: Os dividendos políticos dessa crise que já dura três anos é o crescimento da direita, em alguns países, como a Noruega, tragicamente?

Limongi: A Europa tem um problema grave, que é a pouca tolerância para com o imigrante. Tem dificuldade para assimilá-lo, ao mesmo tempo em que precisa dele. Há países que estão com crescimento negativo, como a Itália. Todo mundo sabe que eles precisam de mão de obra, mas não querem imigrantes. Vão acabar com déficit populacional. Todos os estudos mostram. Isso pode ser fonte de tensão política grande, mas qualquer projeção seria arriscada de como é que isso vai se resolver. Olhando para o que está acontecendo nos EUA e Europa, essas ideias de que o Brasil tem um sistema político problemático, que atrapalha a economia, a distribuição de renda, é história para boi dormir. Tudo se provou errado. Tivemos todas essas coisas sem reforma do sistema político.

Valor: E por que sistemas políticos tão vigorosos não conseguem dar uma resposta à crise?

Limongi: Esses sistemas políticos que sempre foram modelos estão embaralhados com um problema de decisão. O que pode mostrar que o sistema político é muito menos importante do que se pode achar. Há uma supervalorização das escolhas institucionais, uma expectativa de que se possa reformar tudo por modelos institucionais. Li recentemente uma citação do [Pierre] Rosanvallon [historiador francês], dizendo que logo depois da Revolução Francesa os caras começaram a falar em reforma das instituições, sempre com a expectativa de que assim se poderia eliminar todas as impurezas do sistema político. Estamos pensando isso até hoje.

Valor: Em meio a essa crise, os países emergentes têm reivindicado maior parte da governança global, mas há resistências dos ricos, que não lhes reconhecem maturidade institucional para dividir essa governança. Com que argumento se pode sustentar a justeza dessas reivindicações?

Limongi: Quem quer que olhe para o sistema político americano e seu desempenho recente colocará em questão essa ideia. O governo de Bush filho - aliás, imagina só se tivéssemos pai e filho eleitos em tão curto espaço de tempo em um país latino-americano - já começou com uma lambança institucional sem igual. Não se pode dizer que a eleição na Flórida esteve livre de fraudes e, mais, que as fraudes não influíram no resultado. Ao longo do seu governo, explodiram vários escândalos envolvendo financiadores das campanhas de Bush. Basta lembrar a Enron. Isso para não citar a invasão do Iraque, toda ela montada em relatórios discutíveis. Qual é a maturidade institucional do grande líder? E o pior é que não são só os republicanos. O livro do [Joseph] Stiglitz ["O Mundo em Queda Livre"], deveria ser leitura obrigatória. Mostra que os economistas que dirigiam os bancos que causaram a crise de 2008 foram convocados por Obama para resolvê-la. Não é apenas ideologia ou ideias básicas que guiam as políticas. São as pessoas. São os mesmos caras. E eles fizeram o que se esperava que fizessem: protegeram os bancos e deixaram os eleitores pagar a conta.