É muito delicada a discussão que tem tomado corpo sobre a tese de que o "lulismo" interdita o debate político. Do lado da direita, os argumentos usados para sustentar a afirmação têm sistematicamente misturado temas discutidos intensamente há pelo menos duas décadas entre os movimentos sociais e organizações da sociedade civil, subtraído as suas conclusões, ajuizado um "viés autoritário" - principalmente quando elas se referem à democratização da comunicação e aos direitos humanos - e as "denunciado" como decisões ou intenções de governo. É suprimida a informação de que houve um intenso debate nesse processo, porque isso desautorizaria a conclusão de que o governo é autoritário; e também se omite a informação de que a discussão envolveu agentes sociais no máximo mediados por organizações de governo, porque isso tiraria o caráter governista que se pretende dar a essas idéias.
Do lado da esquerda, a interpretação é a de que um líder populista com grande poder de atração sobre setores populares, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, à frente de um governo mais permeável a reivindicações dos movimentos sociais e com uma ligação histórica com o sindicalismo, seria desmobilizador por definição e o grande responsável pelo "descenso" das lutas sociais. Não apenas o debate político à esquerda seria interditado pela mobilidade do governo Lula junto aos setores populares, mas as próprias conquistas populares estariam relativizadas pela falta de conflito. Uma conquista social, por essa visão, apenas é legítima quando fruto de uma luta, de um sacrifício - uma visão épica do socialismo.
Essas visões padecem de alguns vícios. Primeiro, partem do diagnóstico de que o único responsável pelo agendamento do debate é o governo. Isso não é verdade. Embora Lula exerça uma liderança carismática sobre grande parcela da população, foi um presidente que caminhou quase dois mandatos sobre a trilha de agendamentos dos dois maiores partidos oposicionistas, o DEM e o PSDB, excessivamente reverberada pela grande imprensa. A agenda, inicialmente, teve como parâmetros de julgamento a pauta neoliberal do período anterior - à qual, diga-se de passagem, o primeiro governo Lula esteve perfeitamente adequado. Como as divergências na área econômica foram muito reduzidas no primeiro período, o tema moral passou a pautar exclusivamente o debate da oposição, sem que o governo pudesse interferir nessa dinâmica, já que não influencia os principais meios de comunicação. Nos dois casos, da agenda neoliberal e da agenda neo-udenista, o debate político tende a ser restrito - no primeiro caso, porque se parte do princípio de que não existe inteligência na discordância; no segundo, porque um clima permanente de agressão não leva a qualquer conversa em profundidade. É apenas uma luta de boxe.
O que teoricamente deveria ser um debate político sobre a ética, no entanto, não aconteceu, pelo menos do lado institucional. A política ascendeu rapidamente às páginas policiais dos jornais sem que em nenhum momento se tenha debatido como proceder a uma renovação de quadros políticos e como dar substância ideológica a partidos que, relativamente novos, já apresentam sinais de senilidade.
Marginalmente, o debate ético ganhou a sociedade civil via movimento Ficha Limpa que, embora seja pelo menos uma iniciativa, não teve capacidade de manter mobilizados seus atores para fazer um diagnóstico mais profundo sobre as mazelas do sistema político brasileiro. Aliás, sem uma discussão e uma ação política que encare com igual urgência as deficiências da Justiça, a lei poderá se constituir, no futuro, num importante instrumento nas mãos das oligarquias estaduais, que têm ainda forte influência sobre as justiças estaduais - quando não nas instâncias superiores -, e a política continuará sendo o refúgio para malfeitores que usam o mandato legislativo como peça de defesa, valendo-se do foro privilegiado. Estes dificilmente terão uma condenação que lhes suprima o direito de se candidatar.
A outra visão, de que o governo traz em si o poder de desmobilizar os movimentos sociais, é relativa. De fato, o Bolsa Família desarticulou importantes agentes de mobilização popular, mas os movimentos sociais vinham de um período de esvaziamento anterior - assim como os sindicatos -, no período em que seus adversários venderam com relativo êxito o peixe de que as diferenças de classe tinham acabado, e uma conjuntura permanente de estagnação tirou o poder de fogo das lutas reivindicatórias.
A recolocação em pauta do debate político não é, portanto, um assunto e uma responsabilidade só de governo. Não se sustentaria dessa forma, aliás, porque o governo tem um poder de agenda restrito. E esse debate é de interesse da situação e da oposição, tanto à esquerda como à direita. Isso porque todos os atores que se movem na cena política são parte hoje de uma grande crise de representatividade. Falta debate político porque os partidos têm falhado no papel de mediadores de setores sociais e de formuladores de projetos políticos. E têm falhado porque não conseguem dar substância e matéria-prima para a unidade interna, já que são partidos de quadros que pedem votos ostentando discursos baseados quase que exclusivamente no discurso pessoal - "eu sou", "ele é".
Um sistema político sem partidos que mereçam esse nome tem se mostrado incapaz de dar um efetivo salto do país para uma verdadeira democracia. O sistema político brasileiro é o próprio entulho autoritário; existem quadros partidários importantes que são uma pesada herança da ditadura. O sistema mostra-se incapaz de se renovar, formar novas lideranças, atrair valores novos da sociedade civil. A forma como os partidos lidam com isso, quando fazem oposição, e o modo como repercute essa atuação em setores que se identificam com eles, consolidam um preconceito com a política que apenas contribui para afastar ainda mais os bons quadros.
O único jeito de resolver isso é conversar sobre política que nem gente grande.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário