Fábio Wanderley Reis, do Valor Econômico
Anos atrás, trabalhando dados relativos às eleições municipais de 1976, referi-me às eleições municipais anteriores, de 1972, como um "não evento". A intenção era salientar o desinteresse que as cercara mesmo nas parcelas mais atentas do eleitorado, dado o sentimento de um jogo eleitoral irrelevante nas condições da ditadura militar ainda incontrastável. Já em 1976, precedido pela surpreendente vitória do MDB nas eleições de 1974 para o Senado, as coisas eram diferentes.
Temos agora, com as eleições de 2010, outro possível não evento. Não obstante o bom sinal representado por uma Marina Silva a marcar presença, a disputa real se trava entre o repeteco envelhecido e vacilante de José Serra e a tentativa desfrutável de "rotinização" do carisma de Lula em Dilma Rousseff - notavelmente incapaz de dizer com um mínimo de clareza e correção o que quer que seja, mesmo quando parece saber o que quer dizer. Inútil, aparentemente, esperar debates menos aborrecidos que os do dia 5 último, em particular se a oposição tem de evitar aparecer de fato como tal e se, aos olhos dos próprios colaboradores de Dilma, já será um ganho se se conseguir evitar que as características da candidata resultem em acidente desastroso de campanha.
Há, contudo, diferenças cruciais, salvo seja, entre o não evento de agora e o de 1972. Elas dizem respeito ao que pode ser posto em termos do enfrentamento "constitucional" que marcava a política brasileira na segunda metade do século passado, com projetos radicalmente divergentes quanto à organização política do país no quadro mundial da Guerra Fria. A ditadura de 1964 foi, naturalmente, o ápice negativo desse enfrentamento - em forte contraste com a moderação que, num contexto mundial profundamente modificado, a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT à presidência da República acabou produzindo. Some-se a isso o fato de que a moderação permitiu os evidentes êxitos de um longo período de continuidade administrativa básica centrado em duas figuras políticas, Fernando Henrique Cardoso e Lula, inegavelmente especiais, cada um a seu modo, na cena brasileira - e os níveis inéditos de apoio que esses êxitos e o apelo popular de Lula lhe trazem ao final de seus dois mandatos. O aspecto mais notável do contraste com a confrontação que levou a 1964 é que as circunstâncias em que se desenrolou o processo político nacional no último quarto de século dão um papel central às próprias disputas eleitorais na produção da convergência atual, levando a que passem a incorporar com nitidez demandas redistributivas e, em geral, a "questão social" que constituía o foco principal dos ferozes embates "constitucionais" de antes. O que talvez permita ver as feições atuais do processo político em termos de um enfrentamento delimitado por parâmetros - de inspiração inevitavelmente social-democrática - em que a solução definitiva do problema "constitucional" da democrática incorporação política e social de todos se encontra aparentemente encaminhada.
Por certo, não há razão para um otimismo sonso ou míope. É clara a necessidade da reforma política de que tanto se fala, e que, a começar da revisão das absurdas e fantasiosas regras eleitorais em vigor, pudesse fazer que os aspectos positivos da moderação e convergência obtida se traduzissem na consolidação de uma estrutura partidária simplificada, de que PT e PSDB poderiam fornecer os esteios, e capaz de contar com a adesão estável dos eleitores. Sem falar que os resultados econômicos favoráveis, os êxitos redistributivos recentes e até a maior presença internacional do país subitamente alcançada não permitem esquecer o enorme legado social negativo sobre o qual é preciso trabalhar no esforço mais ambicioso da construção de um país de cidadãos reais, com acesso garantido à segurança e aos direitos civis básicos e a bens de saúde e educação.
De todo modo, se certamente não são de estranhar as queixas na imprensa sobre a chatice da atual campanha, certas preocupações vão mais longe e desbordam os parâmetros benignos indicados acima. Assim, há quem não goste de Bolsa Família e não veja êxitos (admiti-los seria ser "reacionariamente situacionista"!), assim como há quem enxergue na convergência a ameaça de implantação de uma ditadura petista ao estilo do PRI mexicano - omitindo que, se a simples ênfase em eleições pode resultar no autoritarismo das "democracias iliberais", a legitimação eleitoral prolongada não é por si só suficiente para que se fale em ditadura. Mas há também quem veja no quadro atual a simples "peemedebização" do país, destacando a face "fisiológica" dos arranjos e composições que a convergência envolve.
Talvez seja exagero: se não vamos ter briga, alguma composição com o atraso, como há muito se diz, parece inevitável. Com os companheiros de chapa de Serra e Dilma, contudo, é melhor torcer, depois da eleição chata, pela saúde do provável presidente.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UFMG. Escreve mensalmente às quintas-feiras.
Anos atrás, trabalhando dados relativos às eleições municipais de 1976, referi-me às eleições municipais anteriores, de 1972, como um "não evento". A intenção era salientar o desinteresse que as cercara mesmo nas parcelas mais atentas do eleitorado, dado o sentimento de um jogo eleitoral irrelevante nas condições da ditadura militar ainda incontrastável. Já em 1976, precedido pela surpreendente vitória do MDB nas eleições de 1974 para o Senado, as coisas eram diferentes.
Temos agora, com as eleições de 2010, outro possível não evento. Não obstante o bom sinal representado por uma Marina Silva a marcar presença, a disputa real se trava entre o repeteco envelhecido e vacilante de José Serra e a tentativa desfrutável de "rotinização" do carisma de Lula em Dilma Rousseff - notavelmente incapaz de dizer com um mínimo de clareza e correção o que quer que seja, mesmo quando parece saber o que quer dizer. Inútil, aparentemente, esperar debates menos aborrecidos que os do dia 5 último, em particular se a oposição tem de evitar aparecer de fato como tal e se, aos olhos dos próprios colaboradores de Dilma, já será um ganho se se conseguir evitar que as características da candidata resultem em acidente desastroso de campanha.
Há, contudo, diferenças cruciais, salvo seja, entre o não evento de agora e o de 1972. Elas dizem respeito ao que pode ser posto em termos do enfrentamento "constitucional" que marcava a política brasileira na segunda metade do século passado, com projetos radicalmente divergentes quanto à organização política do país no quadro mundial da Guerra Fria. A ditadura de 1964 foi, naturalmente, o ápice negativo desse enfrentamento - em forte contraste com a moderação que, num contexto mundial profundamente modificado, a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT à presidência da República acabou produzindo. Some-se a isso o fato de que a moderação permitiu os evidentes êxitos de um longo período de continuidade administrativa básica centrado em duas figuras políticas, Fernando Henrique Cardoso e Lula, inegavelmente especiais, cada um a seu modo, na cena brasileira - e os níveis inéditos de apoio que esses êxitos e o apelo popular de Lula lhe trazem ao final de seus dois mandatos. O aspecto mais notável do contraste com a confrontação que levou a 1964 é que as circunstâncias em que se desenrolou o processo político nacional no último quarto de século dão um papel central às próprias disputas eleitorais na produção da convergência atual, levando a que passem a incorporar com nitidez demandas redistributivas e, em geral, a "questão social" que constituía o foco principal dos ferozes embates "constitucionais" de antes. O que talvez permita ver as feições atuais do processo político em termos de um enfrentamento delimitado por parâmetros - de inspiração inevitavelmente social-democrática - em que a solução definitiva do problema "constitucional" da democrática incorporação política e social de todos se encontra aparentemente encaminhada.
Por certo, não há razão para um otimismo sonso ou míope. É clara a necessidade da reforma política de que tanto se fala, e que, a começar da revisão das absurdas e fantasiosas regras eleitorais em vigor, pudesse fazer que os aspectos positivos da moderação e convergência obtida se traduzissem na consolidação de uma estrutura partidária simplificada, de que PT e PSDB poderiam fornecer os esteios, e capaz de contar com a adesão estável dos eleitores. Sem falar que os resultados econômicos favoráveis, os êxitos redistributivos recentes e até a maior presença internacional do país subitamente alcançada não permitem esquecer o enorme legado social negativo sobre o qual é preciso trabalhar no esforço mais ambicioso da construção de um país de cidadãos reais, com acesso garantido à segurança e aos direitos civis básicos e a bens de saúde e educação.
De todo modo, se certamente não são de estranhar as queixas na imprensa sobre a chatice da atual campanha, certas preocupações vão mais longe e desbordam os parâmetros benignos indicados acima. Assim, há quem não goste de Bolsa Família e não veja êxitos (admiti-los seria ser "reacionariamente situacionista"!), assim como há quem enxergue na convergência a ameaça de implantação de uma ditadura petista ao estilo do PRI mexicano - omitindo que, se a simples ênfase em eleições pode resultar no autoritarismo das "democracias iliberais", a legitimação eleitoral prolongada não é por si só suficiente para que se fale em ditadura. Mas há também quem veja no quadro atual a simples "peemedebização" do país, destacando a face "fisiológica" dos arranjos e composições que a convergência envolve.
Talvez seja exagero: se não vamos ter briga, alguma composição com o atraso, como há muito se diz, parece inevitável. Com os companheiros de chapa de Serra e Dilma, contudo, é melhor torcer, depois da eleição chata, pela saúde do provável presidente.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UFMG. Escreve mensalmente às quintas-feiras.
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